CARA, CADÊ MEU BIFE?
- VRemPauta
- 13 de nov. de 2021
- 5 min de leitura
Porque o amor da humanidade por comer animais deveria te preocupar, mesmo que os humanos sejam os únicos animais com os quais você se preocupa.

Outro dia, enquanto almoçava um típico PF (prato feito) brasileiro, o noticiário da TV mostrava uma matéria de como um simples bife de contra-filé estava impactando nas mudanças climáticas do planeta. Isso me fez refletir sobre a possibilidade de oferecer uma boa picanha sem precisar abater nenhum animal. Será que a produção de proteína bovina sem a necessidade de pastos e abatedouros ainda pode ser considerada ficção científica?
A produção de carne e laticínios é responsável por 14,5% das emissões de gases do efeito estufa do planeta, com cerca de dois terços delas provenientes do gado. Para manter o aquecimento global abaixo de 2ºC acima dos níveis pré-industriais (limite estabelecido pelo acordo climático de Paris) o World Resource Institute diz que grande parte do mundo dos países desenvolvidos precisa cortar seu consumo de carne bovina e ovina em no mínimo 40% - isso mesmo, NO MÍNIMO.
Os brasileiros estão entre os maiores consumidores de carne bovina do mundo, e persuadi-los a cortá-la ou trocar um belo churras com cerveja de sábado por um mix de vegetais é um desafio.
Além disso, nosso país é o maior exportador de carne bovina do mundo (Embrapa). Um exemplo são os dados de 2020: a China importou carne de 29 países, incluindo Brasil, Argentina, Uruguai, Austrália e Nova Zelândia, e o Brasil foi a maior origem, com um volume de importação de 848.400 toneladas, respondendo por 40% do total das importações de carne globalmente, de acordo com relatório divulgado pela agência de pesquisa Forward - the Economist.
Nos últimos anos, uma pequena (mas de rápido crescimento) indústria de desenvolvimento de carne em laboratório surgiu com a missão de criar proteína bovina a partir de linhas celulares que não só tem gosto de carne, mas na verdade é carne. No ano passado, um restaurante em Cingapura até incluiu frango cultivado em laboratório em seu menu.
À medida que o setor floresceu, também começaram as especulações e previsões de “quando” e “como” esse modelo de cultivo (podemos dizer isso?) de carne irá substituir a variedade que exige criação de gado e abate. Mas quão próximos estamos realmente desse futuro, e essa deve ser mesmo a nossa melhor opção? Aqui está o que as pessoas estão dizendo.
A urgência de reduzir o consumo de carne
Por mais irritante que seja a discussão do impacto que a carne bovina causa para a expansão da mudança climática, a tendência é que mais e mais tenhamos essa pauta. Isso porque o mundo está ficando mais rico e, quando as pessoas ficam mais ricas, elas comem mais carne.
● Desde 1961, a produção global de carne mais que quadruplicou, passando de 71 milhões de toneladas para mais de 340 milhões de toneladas.
● Em 2050, a Organização para Alimentos e Agricultura estima que a demanda global chegará a 455 milhões de toneladas.
“Os 7,8 bilhões de humanos neste planeta não podem comer um bife todas as noites”, disse Inger Andersen, diretor executivo do Programa Ambiental da ONU, ao The Times em abril. “Não faz sentido.”
E a mudança climática não é a única questão em jogo na corrida para reduzir o consumo de carne:
● Pandemias: A crescente demanda por proteína animal é um dos principais fatores de risco de surtos de pandemia, de acordo com as Nações Unidas. Outra é a “intensificação” da pecuária que a crescente demanda por carne exige: os animais são criados para serem geneticamente semelhantes e amontoados em enormes instalações que promovem a transmissão viral e a mutação. Desde 1940, as medidas de intensificação agrícola - barragens, projetos de irrigação e fazendas industriais - foram associadas a mais de 50 das doenças infecciosas zoonóticas que se espalharam para os humanos.
● Bem-estar animal: você não precisa acreditar que comer carne é crueldade para se sentir desconfortável com o incalculável sofrimento que a pecuária industrial inflige a bilhões de animais - incluindo trabalhadores humanos - todos os anos.
● Resistência aos antibióticos: cerca de 65% dos antibióticos são vendidos para uso em fazendas, geralmente apenas para evitar que os animais adoeçam. Isso contribuiu para o aumento de doenças resistentes a antibióticos, que já matam 700.000 pessoas por ano em todo o mundo. Em 2050, o número pode aumentar para 10 milhões .
● Doenças de origem alimentar: a carne produzida em laboratório pode reduzir a ameaça de patógenos de origem alimentar, como E. coli e salmonella, que matam 420.000 pessoas todos os anos.
Por que a carne criada em laboratório ainda não está no supermercado?
Ainda há uma série de obstáculos que a carne cultivada em laboratório deve superar antes de atingir a viabilidade comercial:
Paladar: cultivar carne moída é uma coisa, mas replicar a estrutura e a textura de um bife, por exemplo, requer a formação de células cultivadas em um tecido complexo - e os pesquisadores ainda estão descobrindo como fazer isso.
Escala: não é suficiente ser capaz de fazer um bife - você precisa ser capaz de fazer bifes na mesma escala incrível que as fazendas industriais fazem. E, pelo menos por enquanto, os desafios econômicos e de engenharia para construir instalações que respondam em grande escala são proibitivos.
Custo: a carne produzida em laboratório é incrivelmente cara. No início de 2019, a empresa israelense Aleph Farms disse que reduziu o custo de produção de um hambúrguer para cerca de US $ 45 por Kg. A Eat Just, a empresa por trás do frango cultivado em laboratório em Cingapura, disse inicialmente que fazer um único nugget custava US $ 50.
Para que a carne cultivada em laboratório comece timidamente a aparecer nas prateleiras do nosso supermercado de bairro predileto, todos esses problemas terão que ser resolvidos.
Assim, o envolvimento político pode ser necessário não apenas para acelerar a inovação, mas também para garantir que seja amplamente compartilhada. O regime internacional de lei de propriedade intelectual que balizou o lançamento de vacinas desastrosamente desigual no mundo oferece uma prévia preocupante de como outras tecnologias (que salvam vidas) podem ser distribuídas, incluindo aquelas necessárias para manter o aquecimento global abaixo de 2ºC. Definir a transferência de tecnologia como base neste estágio inicial do desenvolvimento da agricultura celular poderia abrir um precedente que desencorajaria outros investimentos em pesquisa, desde salmão cultivado até energia limpa.
Mas alguns dizem que a carne criada em laboratório não será capaz de começar a substituir a carne convencional a tempo - ou talvez nunca. David Humbird, um engenheiro químico formado em Berkeley que passou mais de dois anos pesquisando a proteína de laboratório, acredita que a indústria enfrenta desafios tecnológicos extremos e intratáveis. Em entrevistas, ele disse que era “difícil encontrar um viés que não fosse um beco sem saída”.
Até o presidente-executivo da Eat Just admitiu que os desafios levantados por Humbird precisam ser considerados, deixando “muito incerto” se a carne cultivada pode substituir a carne oriunda do abate nos próximos 30 anos. Nas palavras de Fassler, para a carne de laboratório ser uma solução climática significativa, exigiria vários avanços científicos dignos de muitos prêmios Nobel - e nos próximos 10 anos, não 30.
“A devastação ambiental que enfrentamos é vasta, desestabilizadora e está invadindo nossas vidas reais agora”, escreve Fassler . “Os incêndios, as inundações, já estão à nossa porta. Seria bom saber que temos uma bala de prata. Mas até que uma ciência sólida e acessível ao público prove o contrário, a carne cultivada ainda é uma aposta - uma última ida ao cassino, quando nossa sorte há muito tempo acabou. Devemos nos perguntar se essa é uma chance que queremos aproveitar. ”
Então, aprecie seu bife com moderação, pelo bem do seu bolso e do clima do nosso frágil planetinha.
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