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ROUND 6 E PREVENT SENIOR

Contém spoilers, mas sem eficácia comprovada

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Até onde você iria por dinheiro? Se você não é um discípulo de Diógenes (Sínope/Turquia, 404 ou 412 a.C. – Corinto/Grécia, 323 a.C.) ou fã do Chaves do 8 e vive num barril, certamente já ouviu falar da série Round 6 ou da operadora de serviços de medicina de grupo Prevent Senior. Se não está a par, não há problema algum, pois ofereço uma pequena colaboração acerca desses dois temas super hypados.


Lançada sem muito alarde em setembro, Round 6 vem dominando o “top ten” do serviço de streaming em mais de 90 países, incluindo o complicado mercado norte-americano. Como muitos filmes e programas sul-coreanos, tendo o excelente Parasita (2019) como expoente, a série ganha suporte e peso adicional ao incorporar questões sensíveis do mundo real e unanimidades da cultura pop em sua narrativa bem amarrada, na medida em que canaliza todo o nosso desgosto pelo status quo social e econômico.


Um pequeno parêntese: o nome de lançamento da série nos EUA é “Squid Game”, ou “Jogo da Lula” numa tradução literal. Será que questões políticas e o receio de retaliação de parte do público alvo levaram o serviço de streaming a não utilizar o nome diretamente traduzido? Teria até mais sentido, considerando que o jogo principal do programa não é difundido fora da cultura sul-coreana.


Segundo dados da Oxfam¹, aproximadamente 2.000 bilionários detém mais dinheiro que 4,6 bilhões de pessoas ao redor do globo. Nessa esteira de desigualdades, o palco dos acontecimentos da série, a Coreia do Sul, é um dos um dos países com o maior nível de endividamento familiar no mundo, e vem debatendo formas de superar esse cenário.

No desenrolar da trama, os competidores têm tecnicamente várias oportunidades para escolher se querem ou não continuar participando do jogo, mas, assim como na vida real, os personagens são lançados em conflitos éticos sobre limites, risco e recompensa, deixando claro como dívidas financeiras incapacitantes limitam muitas opções.


Numa outra história quase distópica, dessa vez à brasileira, temos um mercado de planos de saúde importante e potente economicamente, movimentando recursos maiores que o próprio orçamento do ministério da saúde. O Brasil é o segundo maior mercado mundial em números absolutos de vidas com cobertura (atrás apenas dos EUA). Essa estatística seria incompatível com um país que oferta de serviço público universal de saúde. Cerca de 27% da nossa população contrata planos de saúde particulares, em uma das suas quatro modalidades principais: Seguradoras, Autogestões, Cooperativas e Medicinas de Grupo, essa última, onde está enquadrada a Prevent Senior.


A estratégia de atuação da empresa é peculiar: enquanto outros planos de saúde buscam “expulsar” os idosos, dificultando o acesso e permanência castigando-os com reajustes agressivos, a operadora apostou nesse nicho oferecendo mensalidades mais modestas para a terceira idade, contando assim com uma carteira de cerca de 550 mil vidas. É a contramão, visto que a maioria dos planos e seguros de pré-pagamento buscam o equilíbrio atuarial usando choque intergeracional, calibrando a carteira com mais jovens do que idosos por motivos óbvios.


Devido a uma fragilidade maior com a saúde, — que vem junto com a idade — torna-se necessário ter acesso a serviços médicos para se ter cuidados extras e periódicos com a saúde. Assim, a viabilidade do negócio se alicerçou supostamente em duas principais frentes distintas: uma preventiva (que eu acho particularmente interessante, inclusive para ser adaptada para a saúde pública) e uma questionável, baseada no racionamento de procedimentos mais caros, (veementemente negada pela operadora), que inclusive é o cerne da discussão da CPI em curso.

A frente preventiva consiste na busca ativa do idoso: os colaboradores da operadora entram em contato com os comórbidos para monitoramento, acompanhamento e estabilização, evitando assim um potencial uso de estrutura mais complexa de atendimento médico, cortando custos futuros. Quanto mais idosos saudáveis, mais positivo o balanço. Buscam contato e verificam se estes estão visitando seus oftalmologistas (quedas em idosos são estatisticamente perigosas e caras) ou tomando seus medicamentos continuados para doenças crônicas, como os de hipertensão, por exemplo.


Na mão oposta, a operadora é acusada de super racionar procedimentos mais complexos, dificultando as devidas autorizações e incentivando seu quadro médico a promover tratamentos alternativos que evitassem o uso, por períodos mais prolongados, de estruturas de apoio e tratamentos mais dispendiosos. Reclamação semelhante sofre o plano LIV Saúde, em operação em Volta Redonda, baseado no Hospital Santa Cecília, empresa do Grupo ICC. Ambas operadoras negam todas as acusações.


No caso específico da pandemia, cerca de 40% dos pacientes internados em estado grave com covid-19 em hospitais da operadora Prevent Senior em 2020 morreram, segundo dados de um relatório apresentado nesta quinta-feira (14) à CPI da Prevent Senior na Câmara Municipal de São Paulo. A informação foi publicada pelo jornal O Globo. Alguns dos depoimentos já tomados corroborariam as informações de que a operadora banalizou inclusive o chamado “cuidado paliativo”, que consiste em oferecer o fim mais digno e indolor possível ao paciente.


Caso as acusações venham a ser comprovadas, temos um grande ponto de intercessão entre o caso da Prevent Senior e a premissa da série Round 6? Entendo que sim.


O protagonista retorna ao jogo justamente para financiar o tratamento de saúde da sua mãe idosa. Um dos personagens centrais da trama (plot twist manjável desde os primeiros dos nove episódios) joga com as miríades de necessidades alheias, ajudando a ilustrar uma face cruel do capitalismo, levado ao seu extremo. Reforça o egoísmo que o sistema econômico exige para vivermos dentro dele.


No Brasil, por melhores que sejam as iniciativas, a rede pública de saúde ainda é insuficiente para atender a toda população, pois a demanda de pessoas que necessitam de seus serviços é muito maior do que sua estrutura pode suportar. Em diversos casos, a espera pode ser extremamente prejudicial e para pessoas mais idosas ou com complicações médicas, as consequências tornam-se sérias. Por isso, o plano de saúde para idosos tem tanta demanda. Ele deveria assegurar o atendimento célere em qualquer circunstância.

Jogar com essa necessidade em nome de dividendos a acionistas, seja extirpando nossos velhinhos dos seguros com valores elevados demais, ou os atraindo com mensalidades baixas para supostamente não honrar ou dificultar o acesso ao objeto do contrato, tem origem na mesma construção perversa.


Em ambos, há uma banalização do mal e indiferença ao que é humano causada pelo gigantesco abismo de riqueza que se busca criar entre as pessoas. O mal deixa de ser considerado como algo surpreendente, fruto de rostos com cicatrizes e mentes doentias em laboratórios, mas como um aspecto da sociedade, na qual os comuns o praticam, sejam eles médicos, políticos, competidores ou ricos entediados. Isto é, pessoas que não viam maldade em suas ações, pelo contrário, encaravam-na com a naturalidade de quem toma café da manhã.


Tendo visto agora as duras realidades que enfrentam nas brincadeiras mortais e em casa, chances infinitesimais de sobrevivência podem ser melhores do que não deter poder de consumo, na sociedade moderna. Pagar para talvez ter uma chance de atendimento médico, é melhor do que arriscar-se a morrer numa fila. Que comecem os jogos.


1. Fonte: https://www.oxfam.org.br/

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