top of page

Principais Notícias

QUANTO O RACISMO NOS CUSTA?

Lidar com o racismo sistêmico é um imperativo moral; também pode tornar as economias mais fortes

ree

O racismo, a xenofobia e outras formas de discriminação contra as minorias são, infelizmente, fenômenos comuns ao longo da história. Recentemente, nos Estados Unidos, o movimento Black Lives Matter e os protestos mundiais que se seguiram ao assassinato de George Floyd em Minneapolis mostram como o racismo sistêmico ainda é muito real nas nossas vidas. Os protestos foram manifestações de sentimentos mais profundos e ocultos, com o racismo que tem atormentado vários países desde sua fundação.


Exigir o fim do racismo não é apenas um remédio para o legado nefasto de comportamentos desumanizantes, mas também um incentivo ao desenvolvimento econômico. Continuar a negar a existência do racismo (como algumas autoridades têm feito) e recusar-se a enfrentá-lo levará a um mundo menos ético, menos coeso e menos próspero.


Democracia racial ou racista?


Nem me atreverei a abordar a questão do sistema econômico escravocrata brasileiro. Temos grandes tratados sobre o assunto, dos quais friso a obra de Luiz Felipe de Alencastro.


De qualquer forma, as opiniões do Brasil sobre o racismo estão profundamente enraizadas em sua autoimagem nacional. Reflexos da percepção de “ser cordial”, seria a contribuição brasileira para a humanidade, na perspectiva de Sérgio Buarque.


Para muitos, o país é visto como uma “democracia racial” - que decorre da crença de que o Brasil fez a transição diretamente da abolição da escravatura de 1888 (o último país do hemisfério ocidental a fazê-lo) para uma democracia participativa e multirracial, evitando a discriminação consagrada em lei, como na África do Sul e EUA. Na mente de muitos brasileiros, racismo e discriminação não existem no Brasil - afinal, o país nunca aprovou leis como a segregação de Jim Crow ou o Apartheid, então como poderia ser estruturalmente uma pátria racista?


Ainda assim, em um país onde os afrodescendentes parciais ou totais são maioria, os negros no Brasil estão muito atrás dos brancos nos principais indicadores de qualidade de vida. Os negros brasileiros se saem muito pior em parâmetros educacionais. Por exemplo, em 2012, menos de 13% dos afro-brasileiros com mais de 16 anos alcançaram a educação superior, 15 pontos abaixo dos brancos (Pereira 2016).


Alguns atribuem isso às diferenças de classe, não à raça; no entanto, um estudo descobriu que entre irmãos gêmeos brasileiros, na mesma casa, onde um foi rotulado como branco e o outro não branco, o gêmeo não branco estava em clara desvantagem no desempenho educacional, especialmente se o gêmeo fosse do sexo masculino (Marteleto e Dondero 2016).


Os negros brasileiros também sofrem o impacto da violência nas mãos das autoridades. Em 2018, a polícia matou 6.220 pessoas no Brasil e, apesar de representar cerca de metade da população nacional, 75% dos mortos eram negros (Sakamoto, 2019).


Esses fatores sistêmicos têm consequências socioeconômicas generalizadas. Um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE - descobriu em 2019 que a renda média dos trabalhadores brancos era 74% mais alta do que a dos trabalhadores negros e pardos - uma lacuna que permaneceu estável por anos. Mesmo com nível de educação idêntico, os homens afro-brasileiros ganhavam apenas 70% da renda comparável dos homens brancos, e as mulheres afro-brasileiras, apenas 41%.


Nascimento de uma nação


Uma nação multirracial desde sua independência, os Estados Unidos têm lutado para superar o que muitos chamam de seu “pecado original” - a escravidão - e a discriminação racial de direito e de fato que se seguiu à sua abolição. O racismo sistêmico continua a pesar sobre os Estados Unidos e os negros americanos carregam o peso de seu legado.


De acordo com uma análise do Washington Post e do Guardian , os negros americanos têm duas vezes mais probabilidade do que os brancos de serem mortos pela polícia enquanto desarmados. Embora esta seja uma das formas mais conhecidas de racismo sistêmico, o problema é muito mais profundo.


O racismo restringiu o progresso econômico dos negros por décadas. Os benefícios do pós-Segunda Guerra Mundial, que alimentou o crescimento da classe média americana, foram cerceados em grande parte aos negros por insistência de membros brancos do congresso, representantes do sul dos EUA, desesperados por impor a segregação racial. Por exemplo: houve uma política habitacional que se recusava a garantir hipotecas em bairros negros, excluindo-os de uma das vias mais comuns de acumulação de riqueza, o direito à propriedade.


Liberté, égalité, fraternité — pour qui?


Muitos outros países, como a França, vivenciam um racismo arraigado da mesma forma, embora a mitologia nacional desse país afirme que se trata de uma sociedade “firmemente daltônica”. O governo se recusa a compilar estatísticas sobre religião, etnia ou cor da pele em seu censo. Essa visão universalista mascara o racismo moderno resultante de atrocidades históricas. Como acontece com muitos países da Europa, o papel da França na perpetuação da escravidão colonial baseada em raça nas Américas é freqüentemente mal interpretado, levando à crença de que o racismo é um problema do novo mundo, não do velho.


Maboula Soumahoro, especialista em estudos da diáspora africana na Universidade de Tours disse: “Como a escravidão era ilegal no continente, as pessoas na França têm a impressão de que essa história hiper-racializada que é característica do mundo moderno apenas diz respeito às Américas ”, acrescentando que “a França não é cega ao racismo. A França acha que é cega para o racismo ”. Essa recusa em discutir raças, e a política oficial que dela deriva, deixa o país despreparado para enfrentar o racismo sistêmico.


O policiamento na França pode ser menos letal do que no Brasil, mas a violência e a discriminação são direcionadas muito mais às minorias raciais do que aos franceses brancos. Homens jovens negros ou de origem árabe têm 20 vezes mais chances de enfrentar uma abordagem policial, “a blitz”. 20% dos jovens negros ou franco-árabes relataram ter sido vítimas de brutalidade em sua interação policial mais recente - bem acima dos 8% de seus colegas brancos.


Assim como por aqui, esse racismo sistêmico se estende muito além do tratamento policial. Em um país onde a religião costuma estar fortemente relacionada à raça, os homens considerados muçulmanos pelos empregadores têm até quatro vezes menos probabilidade de conseguir uma entrevista de emprego do que os candidatos considerados cristãos, de acordo com o instituto Montaigne (Valfort 2015). Um estudo de 2018 da Universidade de Paris-Est Créteil descobriu que os candidatos a empregos com nomes que soavam “árabes” tiveram 25% menos respostas do que aqueles com nomes que soavam “mais francês”.


Custos econômicos


O racismo sistêmico é um problema global. É real, e há um argumento moral robusto para abordá-lo. No entanto, um fator que muitas vezes é ignorado nesta conversa crítica é a dimensão econômica mais ampla. Por evitar que as pessoas aproveitem ao máximo seu potencial econômico, o racismo sistêmico acarreta custos econômicos significativos. Uma sociedade menos racista pode ser economicamente mais forte.


Por exemplo: quanto o Brasil está perdendo entre consumo (e consequentemente tributos) e investimento potencial por causa de suas comunidades marginalizadas?


Veja a diferença de riqueza entre brancos e negros americanos, que está projetada para custar à economia dos EUA entre US $ 1 trilhão e US $ 1,5 trilhão em consumo e investimentos perdidos nos anos 2019 e 2028. Algo em torno de 4 a 6 por cento do PIB em 2028 (Noel e outros 2019).


Pense na França, onde o PIB poderia saltar 1,5% nos próximos 20 anos - um bônus econômico de US $ 3,6 bilhões - reduzindo as lacunas raciais no acesso a empregos e educação (Bon-Maury e outros 2016).


Um flagelo mundial


É claro que esses três países não são os únicos a vivenciar o racismo, seus efeitos deletérios sociais e econômicos e a necessidade de um reconhecimento mais amplo de sua existência.


Em uma pesquisa com australianos feita após os protestos de George Floyd, 78% dos entrevistados disseram que as autoridades dos EUA não estavam dispostas a lidar com o racismo. Apenas 30% acreditavam que havia racismo institucional nas forças policiais australianas. Essa visão está em conflito com a experiência vivida pelos indígenas australianos em particular, e com os A$ 44,9 bilhões que o Instituto Alfred Deakin acredita que o racismo custou à Austrália entre os anos de 2001 e 2011.


Enquanto isso, vários incidentes racistas na China contra imigrantes africanos põem em risco o lucrativo comércio sino-africano e as relações de investimento. De acordo com Yaqiu Wang, pesquisador da Human Rights Watch, este é outro caso de negação da discriminação, “onde as autoridades chinesas alegam 'tolerância zero' para a discriminação, mas o que estão fazendo aos africanos em Guangzhou é um caso clássico de racismo”.


Os países não devem tentar lidar com o racismo simplesmente porque isso ajudará em seu desenvolvimento econômico. É uma dívida para com os seus próprios cidadãos. No entanto, o mundo deve compreender que o compromisso de respeitar os direitos humanos e a igualdade racial não deve ser uma declaração passiva de valores. Deve ser uma chamada à ação, apoiada por medidas ativas para reconhecer, compreender, medir e erradicar o racismo sistêmico. O mundo está em um ponto de inflexão e cabe aos nossos representantes enfrentar o momento. Do contrário, o racismo continuará a nos custar, e não falo apenas de economia.



Referências:


Pereira, Claudiney. 2016. “ Ehno-Racial Poverty and Income Inequality in Brazil .” Documento de Trabalho 60 do CEQ Institute, Tulane University, New Orleans.


Sakamoto, Leonardo. 2019. “ Mais de 75% dos mortos pela polícia em 2017 e 2018 eram negros .” Blog do UOL, 10 de setembro.


Marteleto, Letícia J. e Molly Dondero. 2016. “Racial Inequality in Education in Brazil: A Twins Fixed-Effects Approach.” Demografia 53 (4): 1185–205.


Noel, Nick, Duwain Pinder, Shelley Stewart e Jason Wright. 2019. “ The Economic Impact of Closing the Racial Wealth Gap .” Relatório da McKinsey and Company, Nova York.


Valfort, Marie-Anne. 2015. “ Religious Discrimination in Hiring: A Reality .” Relatório do Institut Montaigne, Paris.

Comentários


Destaque

Praia de Botafogo

Metropolitana

Em Pauta

bottom of page